A Direção do Olhar

O ano ainda não acabou, mas o balanço sobre os oito primeiros meses do governo Dilma Rousseff já divide opiniões. Para alguns, 2011 ficará marcado pelas denúncias de corrupção que derrubaram ministros importantes. Outros hão de se lembrar da faxina empenhada pela presidente para se livrar da herança ‘maldita’ deixada pelo seu antecessor.

Pode ser que uma hipótese ou outra esteja correta, quem sabe ambas, ou talvez nenhuma delas. Particularmente, não saberia dizer. Porém arrisco o palpite de que é só uma questão de perspectiva. Como acontece com quase tudo na vida, claro. Menos do que a política, o que mais me chama atenção é o olhar que as pessoas direcionam sobre as coisas.

Na segunda semana de julho, citei um artigo do correspondente do jornal El País, Juan Arias, que questionava o porquê dos brasileiros não reagirem diante dos sucessivos escândalos de corrupção. Não tem aquele ditado: o que os olhos não veem, o coração não sente? Pois bem. Começo a achar que fomos cegados pela nossa própria visão.

De certo, não me refiro aqui aos dados epidemiológicos do Ministério da Saúde de que, no Brasil, 30% das crianças com idade escolar e 100% dos adultos com mais de 40 anos apresentam problemas de refração. (Leia-se miopia, hipermetropia e astiguimatismo) E sim de nossa incapacidade de enxergar com clareza, sem aquela poeira habitual que encobre os olhos do mais atento observador.

E verdade seja dita, quando o assunto é política, fica a sensação de que o filme é repetido, a trama (ou tramoia?) é conhecida, os personagens não mudaram tampouco o enredo final. Tecla SAP: já vimos tudo. Não por acaso, a arte de olhar sempre foi muito debatida pelo cinema. Segundo o cineasta Jean-Louis Comolli, “o que eu vejo me mostra de onde eu vejo e como eu vejo. Essa ideia de retorno de si para si, que é a própria ideia da consciência…” (COMOLLI: 2008,99)

Nas palavras de Comolli, estaria faltando um pouco mais de consciência. Uma capacidade de voltar-nos para dentro de nós a fim de entender o que se passa a nossa volta. Atitude que também envolve riscos. Você alguma vez ouvir falar na história do jovem Narciso?

Corria a lenda de que ao nascer, um oráculo teria anunciado que Narciso poderia viver por muito tempo, se jamais enxergasse a si mesmo. Para proteger o filho, o rio Cefiso quebrou todos os espelhos de casa e entregou a Narciso um objeto mágico onde ele só conseguia ver sua imagem distorcida. Até que um dia, ao debruçar-se às margens de um rio para matar a sede, Narciso teria se apaixonado pela própria imagem refletida na água. Resultado: morreu afogado ao mergulhar-se no rio para abraçar-se.

O mito serve de alerta àqueles que não resistem ao impulso de ficarem tão absortos em seus devaneios que se esquecem da realidade. Principalmente, porque a gente sabe que a corrupção corre sempre por debaixo dos panos, portanto, é mais difícil de ser percebida.

Para driblar a cegueira, o poeta René Char tem uma receita valiosa: “Se o homem, às vezes, não fechasse com convicção os olhos, acabaria por não ver o que vale a pena ser guardado.” Suspeito que falte um pouquinho mais de convicção nos assuntos relacionados ao Congresso.

Fique de olho na segunda-feira e até a próxima.

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