Olá leitor,
Antes de mais nada, quero avisar que a partir desta semana, a coluna Sociedade vai dividir o espaço com outras pessoas – gente interessante, amigos, quem tem história para contar e, claro, quem está dando o que falar.
E, aproveitando o clima do Festival do Rio, a coluna estreia com um bate-papo com a jornalista, cineasta, escritora e, futura historiada, Letícia Simões. Em cartaz no Festival do Rio com o documentário “Brutas Aventuras em Verso”, sobre a escritora Ana Cristina Cesar, Letícia também acaba de lançar o livro de poesias “Pessoas de quem eu roubei frases” (7 Letras, R$28,00). Espero que goste da entrevista e deixe seu comentário.
Sociedade: Letícia, é sua estreia como diretora? Você já tinha participado do Festival do Rio antes?
Letícia: É minha estreia como diretora de longas metragens, sim. Eu dirigi dois curtas-metragens (“Querida B,” e “Um domingo no MAM”) que percorreram alguns festivais internacionais e nacionais. O último vai passar no Canal Brasil, em novembro. Minha experiência é maior como assistente de direção, área em que eu trabalho desde 2009. Ano passado, o documentário da minha montadora e grande amiga, Márcia Watzl, foi selecionado para a Premiére Brasil. Nele, eu trabalhei como assistente de produção e dando ‘pitacos’ na edição final, mas nada desse tamanho. Este ano, eu estou com dois filmes no Festival do Rio! Imagina?! O meu, sobre a Ana, e o outro é “Um domingo com Frederico Morais”, em que trabalhei como roteirista e assistente de direção.
Sociedade: Por que você decidiu fazer um documentário sobre a Ana Cristina Cesar? Qual a sua relação com a personagem?
Letícia: Tem a resposta fácil e a complicada. A fácil é porque ela é uma poeta fundamental na minha vida e no meu trabalho. A complicada, em 2009, eu fui editora dos extras do DVD ‘Só dez por cento é mentira’, do Pedro Cezar, que é um amigo muito próximo (e escreveu o prefácio do meu livro). Na época, eu trabalhava como assistente de direção dele em um projeto que acabou não sendo distribuído, ainda que finalizado. E ele disse que eu tinha que sair dessa história de assistente e dirigir logo meu primeiro longa-metragem, que deveria ser sobre alguém muito norteador na minha vida, mas que não tivesse nenhum filme a respeito. A Ana não tinha, só o curta do João Moreira Salles, que na verdade é mais um ensaio do que qualquer outra coisa. E ao longo da pesquisa, eu fui identificando traços da biografia dela muito, mas muito parecidos com o meu. E daí veio a ideia do filme: pessoas que tiveram a vida modificada pelo encontro com a poesia da Ana.
Sociedade: Em termos de produção literária, sua poesia tem alguma semelhança com a da Ana Cristina? Você ‘roubou’ alguma frase dela para o seu livro recém-lançado?
Letícia: Tem alguma, sim. Impossível dizer que não. Ela é citada no meu prefácio, na minha orelha, nas ‘pessoas de quem eu roubei frases’… Esse debruçar sobre o cotidiano – e, ainda mais, o cotidiano feminino – é muito particular na poesia da Ana. Ela desnuda a intimidade feminina de uma forma até pornográfica, eu diria. Mas eu sou um pouco mais labiríntica do que ela, – que horror, quem pode ser mais labiríntica do que Ana Cristina Cesar?!-, no sentido de que, se ela brinca com os limites entre ficção e realidade a ponto de utilizar-se de personagens reais, eu não chego a tanto. Meus poemas não são direcionados, são mais abstratos. Talvez seja medo. Quem sabe? Sobre as frases: roubei MUITAS! Mas eu não conto quais são. Risos.
Sociedade: Por ser um documentário cuja personagem central é uma escritora, de que maneira você conciliou a linguagem audiovisual com a linguagem escrita, sem que isso provocasse prejuízo para ambas? Você encontrou dificuldades para fazê-lo?
Letícia: Nossa, isso foi um parto. Desde o início, eu sabia que não queria pessoas recitando a Ana. Jamais. Isso, para mim, seria uma traição à poesia dela. Eu rebolei para colocar os poemas de forma, ao mesmo tempo, audiovisual e escrita. A própria linguagem do filme foi sendo descoberta durante a montagem – o enquadramento, o estilo, a câmera na mão – de forma a não ser uma mera leitura, mas uma parte da proposta visual do filme.
Sociedade: O filme usa, pela primeira vez, imagens históricas da Ana Cristina. Como foi o processo de seleção/captação destas imagens?
Letícia: Passei dois anos envolvida na pesquisa do documentário. E como eu não tinha dinheiro, eu era chata mesmo: pedia informação a toda e qualquer pessoa sobre a Ana. Os amigos me ajudaram muito, muito mesmo. O super-8 que aparece no filme me foi dado pelo Luiz Alphonsus Guimaraens, artista plástico/cineasta, de tão tocado que ele ficou com a minha busca. E eu me enfurnei no Instituto Moreira Salles por meses – o acervo da Ana fica lá – fazendo todo o levantamento de rascunhos, desenhos, fotografias, originais, manuscritos…
Sociedade: A questão do suicídio vai aparecer no filme? De que modo ela é tratada?
Letícia: Desde o início, eu sabia que esse não seria o mote do meu filme. Ainda na fase de concepção do roteiro, eu quis deixar bem claro que o ‘Bruta’ seria um filme sobre a poética da Ana e não sobre a pessoa da Ana. Além disso, para mim, há uma questão ética muito forte: quem sou eu para falar do suicídio dessa pessoa? Obviamente, há uma ferida muito grande, deixada por essa morte tão abrupta, nos familiares e nos amigos. E eu não tenho o direito de abordar levianamente essa questão. E para mim, qualquer abordagem seria por si só leviana.
Sociedade: Como futura historiadora, você acha que o fato da Ana Cristina ser um ícone da poesia marginal tem alguma relevância para o contexto histórico que estamos vivendo atualmente? O que você acha que motivou a escolha do filme para o Festival do Rio?
Letícia: Essa questão da poesia marginal é complexa e isso é bem tratado no filme. A geração marginal foi ultra-interessante, apesar de ainda não ter sido totalmente explorada pelo cinema, a produção jornalística, teatral e musical. “Um domingo com Frederico Morais”, do Guilherme (Coelho), por exemplo, aborda um pouco essa ‘geração marginal’, mas dentro das artes plásticas. Houve uma confluência interessante de pessoas criativas e dispostas a empregar essa criatividade sem pressões financeiras, porém isso é muito pouco falado! Enfim, acho que isso foi relevante sim para a escolha do filme, mas também porque a Ana tem muitos fãs espalhados por aí!
Sociedade: Falando mais especificamente sobre documentário: apesar de a produção brasileira ter aumentado nos últimos anos, o público ainda é pequeno se comparado à ficção. Para quem está começando agora, quais as maiores dificuldades que irá encontrar para produzir documentário no Brasil?
Letícia: Quem pague!! (Risos) O ‘Bruta’ eu fiz inteiramente sozinha, perdendo todos os editais, com a ajuda de amigos. Quem custeou a finalização foi a produtora onde eu trabalho porque acreditaram no potencial do filme. Mas só depois dele ter passado no Fest Rio. Por outro lado, o documentário tem esse ‘jogo de cintura’, que faz com que você consiga produzir um longa-metragem com pouquíssimos recursos financeiros. E eu acredito que determinados assuntos ficam muito mais interessantes em termos documentais. Comentei sobre isso na semana passada: eu jamais faria uma ficção sobre Ana Cristina Cesar. Em dois minutos, ele cairia no lugar-comum (e patético) da poeta incompreendida que se matou. O que não é, nem de longe, o aspecto que eu quero tratar. Talvez eu escrevesse uma história muito louca de alguém que foi fazer um espetáculo baseado na poética dela e descobre os livros. Sei lá. Eu acho a estrutura documental muito mais interessante nesse caso, por exemplo.
Sociedade: Você pretende trabalhar com ficção ou apenas com documentário? Depois de “Bruta Aventura em Versos”, já tem algum outro projeto em mente?
Letícia: Fazendo esse filme e sentindo na pele a dificuldade de tratar de uma autora sem tê-la presente, me deu uma imensa vontade de conhecer (filmando, claro) a Adélia Prado. Ela é outra poeta basal da minha vida e da minha poesia. E depois que eu li uma entrevista dela à revista de literatura do Instituto Moreira Salles, me deu uma vontade imensa de conhecê-la. Ando pensando numa coisa muito louca: juntar duas amigas minhas, nos metermos num carro com o equipamento de filmagem e irmos até Divinópolis, onde ela mora com os livros dela. Acho que seria uma proposta de filme diferente e muito reveladora da própria poesia da Adélia, que vai ainda mais fundo nessa questão do feminino, em busca de uma alma feminina, e de uma relação com a natureza humana incomensurável. Mas vamos ver, é apenas uma ideia. Quem sabe?
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