Imagine-se, por um momento, como um grande fã das aventuras cinematográficas de James Bond. Ansioso para conferir um novo filme da série, você constata, para sua surpresa, que ele é estrelado pelo colega de 007 no serviço secreto, o 008. Haveria de cara uma decepção. Uma aventura do 008 pode até ser eficiente, mas nunca será uma experiência tão interessante quanto acompanhar o verdadeiro Bond.
Esta analogia serve para descrever o sentimento que acompanha o público durante O Legado Bourne, uma produção até competente, com quase todos os ingredientes responsáveis pelo sucesso da trilogia do agente Jason Bourne, menos o próprio.
Os três filmes com o personagem vivido por Matt Damon, um assassino desmemoriado treinado por um programa experimental da CIA, representaram uma reinvenção no cinema da ação na década passada. A trama com tons existencialistas (Bourne passava a trilogia tentando descobrir quem era), a ação fotografada com rigor quase documental e a ênfase no realismo tiveram profundas repercussões. Não à toa, a trilogia teve influência direta na renovação do já mencionado James Bond.
Durante alguns anos, Damon e o diretor Paul Greengrass tentaram trabalhar num quarto filme, porém sem resultado. O maior problema deles era o fato do encerramento da trilogia, O Ultimato Bourne (2007) ter sido tão satisfatório, tão… perfeito (sim, esta é a palavra certa), que qualquer ideia para um novo capítulo parecia redundante. Ainda assim, o estúdio Universal decidiu continuar a franquia. O escolhido para assumir a tarefa foi Tony Gilroy, roteirista dos dois primeiros Bourne, colaborador no roteiro do terceiro e diretor indicado ao Oscar por Conduta de Risco (2007).
A trama se passa paralelamente aos eventos de O Ultimato Bourne. Treadstone, o projeto secreto responsável pela criação de assassinos como Bourne, implodiu devido às denúncias na imprensa. Em decorrência disso, alguns membros do alto escalão como Mark Turso (Stacy Keach) e Eric Byer (Edward Norton) decidem eliminar todos os programas, bem como seus agentes. Aaron Cross (Jeremy Renner), agente do programa Outcome, torna-se um alvo. Viciado em drogas que alteram seu comportamento, seu físico e sua inteligência, ele busca a ajuda da doutora Marta Shearing (Rachel Weisz) para livrar-se do vício. Os dois passam a ser caçados pela polícia e por operativos da CIA, dispostos a tudo para eliminá-los.
Percebe-se que O Legado Bourne segue os mesmos passos básicos dos anteriores. Os ingredientes estão todos lá. E de fato, o filme até os utiliza com competência. As sequências de ação são, na sua maior parte, eficientes (embora lhes falte o tom de urgência que Paul Greengrass conseguia imprimir nos outros exemplares da série). O elenco é ótimo e dedicado, especialmente Renner, intenso e convincente. As participações de veteranos da trilogia, como Joan Allen e David Strathairn, parecem naturais e apropriadas.
Mas, tudo isso não consegue disfarçar o fato de que O Legado Bourne é um filme completamente desnecessário. Apesar de suas qualidades, ele nunca consegue superar a ausência de Jason Bourne, e este vira um verdadeiro fantasma a assombrar a produção.
Toda história um dia chega ao fim. A de Jason Bourne não foi exceção. O filme comprova com perfeição a velha teoria de que, em Hollywood, pouquíssimos sabem a hora de parar. A obsessão por franquias e marcas reconhecíveis tornou-se tão poderosa que acaba criando aberrações como esta: o caso raro de um filme cujo personagem-título não aparece em momento algum.
Cotação: ★★★ Bom