Lembram-se da Mammie, a empregada da Scarlett O’Hara em E O Vento Levou ( 1939)? Com sua vozinha esganiçada, seu jeito infantilizado e sua eterna dependência da patroa branca, não se pode dizer que a personagem era uma boa representação do negro no cinema americano. E, como prova de que às vezes nós nos deixamos levar por caricaturas, a atriz Hattie McDaniel ganhou o Oscar de atriz coadjuvante pelo papel (a primeira negra a ser premiada pela Academia).
Agora, o espírito de Mammie assombra Histórias Cruzadas (The Help), do diretor novato Tate Taylor. Baseado no livro da escritora Kathryn Stockett, o filme se passa no sul dos Estados Unidos, no Mississipi, durante os anos 60, a época mais terrível da segregação racial. Trata-se de um período no qual os brancos e negros não podiam dividir os mesmos banheiros, os mesmos assentos nos ônibus e tampouco podiam entrar pela mesma porta nos estabelecimentos. Enquanto isso, as empregadas domésticas negras criavam os filhos das mulheres brancas da alta sociedade, desenvolvendo laços afetivos com as crianças – laços mais fortes do que o relacionamento delas com as próprias mães.
A jovem Eugenia “Skeeter” (Emma Stone) se diferencia das demais mulheres da cidade por querer ser escritora, ser inteligente e não estar interessada em arranjar marido. Skeeter decide escrever um livro contando as histórias das empregadas negras, atraindo a atenção de uma editora em Nova York. Com muito esforço, ela consegue os depoimentos de Aibileen (Viola Davis) e Missy (Octavia Spencer), duas mulheres com muitas histórias de vida, tanto engraçadas quanto tristes. A publicação do livro, mais tarde, causa grande repercussão por toda a cidade, ao mesmo tempo em que os Estados Unidos davam seus primeiros passos rumo ao fim da segregação.
Mas, por que Mammie (que inclusive é mencionada durante a história) assombra o filme? Porque, durante toda a duração de Histórias Cruzadas não vemos personagens completos numa trama sobre um período histórico real e importante. Vemos caricaturas. O diretor Tate Taylor aparentemente pretendeu fazer um filme leve sobre o tema, mas não achou o tom certo nem no roteiro (do qual também é o autor) nem na encenação.
Chega a ser embaraçoso ver boas atrizes como Bryce Dallas Howard e Jessica Chastain relegadas a papéis tão superficiais. A primeira, no papel da socialite Hilly, é praticamente uma vilã de novela da Globo (e para deixar sua maldade bem clara, o filme abandona toda a sutileza quando ela passa a exibir uma ferida no lábio). E a segunda, que causou tão grande impressão como a mãe dos garotos em A Árvore da Vida (2011), interpreta a caricatura da caricatura: sua Celia é uma figura completamente rasa e tola, e a atriz não se sai bem no papel.
As únicas personagens com um pouco mais de profundidade são Skeeter e Aibileen. A jovem Emma Stone tem mais um ótimo momento e Viola Davis é simplesmente magnífica. Essa atriz de olhos fortes e rosto poderoso dá a Histórias Cruzadas uma força que o filme simplesmente não possui quando ela não está em cena. Viola é a responsável pelos únicos momentos de emoção genuína na narrativa.
E é na personagem Missy que o espírito de Mammie vive. Apesar do carisma de Octavia Spencer, sua personagem é um estereótipo, igual à velha empregada da Scarlett O’Hara – embora, obviamente, um pouco atenuado para as plateias modernas. Missy não aceita desaforo dos brancos, mas ainda assim é engraçada e exagerada, quase o alívio cômico da narrativa. E comprovando que as caricaturas sempre podem funcionar, Spencer foi premiada com o Oscar de coadjuvante (como McDaniel).
Histórias Cruzadas não chega a ser ruim ou inassistível, mas é muito superficial para ser considerado um filme importante sobre o racismo. Ele é da escola de Conduzindo Miss Daisy (1989): bem produzido, bem intencionado e simpático, mas não discute a fundo esse problema ainda tão presente. Na verdade, é paternalista: mais um filme onde os negros são ajudados pelos brancos, pois não conseguiriam sozinhos.
Cotação: ★★ Regular