“Diariamente, a mulher gorda morre uma série de pequenas mortes.”
– Shelley Bovey
Assim é a epígrafe do quarto romance policial do “grande fazedor de arte” Jô Soares. Nesta obra, que já chegou ao topo das listas de livros de ficção mais vendidos, Jô traz uma mistura de trama policial com romance de época, mais precisamente o Rio de Janeiro no fim dos anos 30, em plena ditadura do Estado Novo e enquanto a cidade carioca ainda era Capital Federal.
O ponto de partida é o clima de mistério que assola a cidade quando jovens moças de conhecidas famílias da sociedade carioca somem sem deixar vestígios e são encontradas mortas de forma grotesca e impressionante. O perigoso serial killer que está à solta pelas ruas apresenta uma característica peculiar: o ataque a mulheres jovens, bonitas e… gordas. Sua isca: apetitosos doces portugueses. Já de início, percebemos estar diante de algo cômico e, ao mesmo tempo, trágico.
Em meio a requintes de crueldades gastronômicas, a tragicomédia mexe com o estômago do leitor, para o bem e para o mal, ao revelar o mistério por trás do assassino das gordas esganadas. Em torno de um crime com motivação psicológica profunda, o livro envolve elementos do prazer, no ato de comer, de matar e de gozar. Tudo proveniente de um trauma familiar de infância relacionado à figura materna – que se revela como uma espécie de Complexo de Édipo e sede de vingança.
A narrativa pode ser caracterizada como uma espécie de suspense inverso, já que, diferente dos tradicionais thrillers do gênero, o assassino é apresentado logo no início. Este é Caronte, jovem herdeiro da funerária Estige, a mais prestigiosa da cidade. Ainda assim, a curiosidade na leitura se mantém, principalmente, pelos percalços que se desenrolam com os personagens envolvidos na investigação criminal: quatro policiais – um famigerado chefe de polícia, um delegado ranzinza, um auxiliar robusto e medroso, um sofisticado e culto ex-inspetor – e uma jovem e atraente repórter. A trama mescla realidade com fantasia, personagens fictícios e outros verídicos, como Fernando Pessoa – e também acontecimentos reais da época.
Ao se tornar cúmplice ou testemunha destas ações, o leitor encontra uma narração inteligente, com o humor, ironia e sarcasmo característicos dos tipos de Jô, mas, sobretudo, um humor negro, um tanto quanto ácido. Nos deparamos ainda com personagens caricatos e bem construídos, além de uma forte contextualização histórica, porém, em alguns momentos, com situações demasiadamente detalhadas e que não são ligadas ao caso investigado – como uma partida de futebol, por exemplo –, o que quebra um pouco o ritmo e torna a leitura cansativa nestes pontos. Eu diria que a história se perde um pouco neste detalhamento.
A linguagem chama a atenção por mesclar a simplicidade com o uso de um vocabulário rebuscado que aparece de forma pontual no texto. Mas a formalidade que, por vezes, aparece é quebrada quando o narrador abre mão de alguns termos chulos, pejorativos e cenários grotescos – cenas que beiram ao ridículo, mas cômico, e dão um toque original à obra –, todos emoldurados por sinfonias musicais que proporcionam um clima de suspense ao cenário do crime, tal qual o clássico “Psicose”, de Alfred Hitchcock.
“As esganadas” traz uma boa história, com personagens marcantes, em uma leitura simples e rápida, bem estruturada, que impressiona pelo enredo “politicamente incorreto” e, no geral, é divertida! Para quem curte história, inclusive, a viagem no tempo é uma surpresa saborosa, mesmo para quem não viveu a época em questão; nas palavras de Luis Fernando Verissimo, que assina a orelha do livro: “o Rio das vedetes que davam e dos políticos que tomavam, das estrelas do rádio e das corridas de ‘baratinhas’”. Devo confessar, entretanto, que, ao julgar o livro pela capa – que achei ótima –, esperava algo mais! Por fim, tentei apreender o que mais me marcou nesta obra, o fio condutor, o “a que veio” e achei bastante plausível, pois se torna uma paródia de uma realidade que atinge o próprio autor e que foi bem definida em uma frase do livro: “existe um preconceito velado contra a obesidade.” A devoção à comida é, sem dúvidas, um ato socialmente perigoso.
As Esganadas
Autor: Jô Soares
Editora: Cia das Letras
Ano: 2011