Renato Russo, poeta e músico fundador da banda Legião Urbana, por um tempo nutriu a ideia de virar cineasta. Isso pode explicar a canção Faroeste Caboclo, que saiu no disco Que País é Esse? em 1987 – um verdadeiro épico de 9 e poucos minutos, rico em imagens e com uma narrativa bem cinematográfica como base: a trajetória do protagonista João de Santo Cristo, sua vinda à Brasília, sua vida no crime e como o amor por uma garota o modificou. Inspirados pela canção, o diretor René Sampaio e os roteiristas Marcos Bersntein e Victor Atherino conceberam o filme Faroeste Caboclo, transformando os versos de Renato Russo numa narrativa interessante que faz uso de elementos do cinema americano, trazendo-os para a realidade brasileira.
João de Santo Cristo (Fabrício Boliveira, ótimo e intenso) é um jovem que parte para Brasília, no começo da década de 1980. Através de flashbacks, vemos momentos da sua infância miserável, o assassinato do seu pai e a morte da sua mãe. Ele passou parte da juventude na prisão por ter matado um policial. Na capital, João entra em contato com seu primo Pablo (Cesar Trancoso), para o qual começa a fazer pequenos trabalhos criminosos – leia-se, venda de drogas. Numa noite, conhece Maria Lúcia (Isis Valverde), jovem endinheirada e entediada. Os dois iniciam um romance, que enfrentará desafios quando João ascender no mundo do crime e atrair a inimizade do traficante Jeremias (Felipe Abib).
A letra de Faroeste Caboclo já deixava entrever influências de outras culturas – por exemplo, a “Winchester 22” do herói, uma arma tipicamente usada por John Wayne em vários filmes; ou o próprio título da canção. Ao adaptar o enredo da música para o cinema, os roteiristas e o diretor usaram essas ideias para conceber um verdadeiro “faroeste brasileiro”.
Assim, o diretor Sampaio cita, logo no início, o grande diretor italiano Sergio Leone ao encenar a cena do duelo: closes fechados nos olhos do protagonista, planos de detalhes das armas… Na trilha sonora, ouvem-se guitarras rascantes, no melhor estilo faroeste. Mais à frente, o vilão Jeremias aspira com o nariz uma pilha de cocaína em cima de uma mesa, fazendo uma referência clara ao Scarface (1983) de Brian De Palma. Nesse sentido, Faroeste Caboclo é uma obra com fortes raízes na cultura pop, mesclando várias influências.
Faroeste Caboclo pode flertar com o cinema americano, mas o conflito central da história é inteiramente brasileiro. O João de Santo Cristo é, na definição de um dos personagens, “preto, pobre e analfabeto”, mas sua luta ao longo da história é para reclamar um pouco dos privilégios da classe dominante – ele quer ter dinheiro, bens e namorar a garota rica. Porém, ele é castigado por tentar mexer com o status quo. Ao longo do filme são muitas as referências raciais ao personagem – “discriminação por sua classe e sua cor”, já dizia um dos versos da canção, deixando claro o racismo brasileiro. E é sintomático que o vilão do filme seja o traficante branco, o conhecido “playboy”. Assim, o duelo final entre João e Jeremias se torna um microcosmo da eterna luta brasileira entre o país pobre, almejando melhorar de posição social, e o país rico e concentrador da riqueza, incapaz de abrir mão de alguns privilégios. E o resultado desse conflito é destruidor para ambos, como tem sido para o Brasil desde o início da nossa História.
Esses elementos ficavam apenas subentendidos na canção da Legião Urbana, mas no filme ganharam mais força, o que constitui o maior mérito da produção. Faroeste Caboclo, o filme, aborda problemas importantes da realidade brasileira, mas como pano de fundo, deixando a reflexão para o espectador, e se preocupa, sobretudo, em entreter. Mesmo fazendo uso, sem pudor, de ferramentas já testadas no cinema americano, escapa de se tornar um mero pastiche – nesse sentido é fiel ao espírito da música da Legião Urbana, que também se valia de um ritmo estrangeiro, o rock, para veicular sua poesia e falar sobre o país.
Título: Faroeste Caboclo
Dirigido por: René Sampaio
Gênero: Drama
Ano: 2013
Nacionalidade: Brasil
Cotação: ★★★★ Muito Bom