A rotina de um filme

Não é fácil olhar com entusiasmo para o próprio cotidiano. No trabalho, é comum se sentir entediado após anos vivendo a mesma rotina. É por isso que A noite americana, de François Truffaut, apresenta um caso raro. Em 1973, quando o longa foi lançado, Truffaut já dirigia filmes há mais de uma década. O incrível é que ele ainda via o seu dia-a-dia como algo mágico. Entre as entrevistas reunidas por Anne Gillain em O cinema segundo François Truffaut (Ed. Nova Fronteira, 450 páginas), o diretor reconhece a admiração e curiosidade em relação ao seu trabalho.

Todo mundo acha misteriosa a profissão de cineasta. Sentimos isso nas perguntas  que nos fazem e às quais temos muita dificuldade de responder. Durante a guerra, perguntei a um adulto: “Em quanto tempo se faz um filme?” Ele respondeu: “Em três meses.” (…) Acabava de descobrir o que a maioria das pessoas sabem. Agora, no interior desses três meses, tudo é mistério.

Para desvendar esse mistério, A noite americana mostra a gravação de outro longa, A chegada de Pamela, nos Estúdios Victorine, em Nice. Ao focar nisso, a trama se distancia um pouco de Oito e meio, de Fellini, que não chega a abordar as filmagens. O próprio Truffaut interpreta o diretor Ferrand, que resume com bom humor sua expectativa no set: “Fazer um filme é como uma viagem de carroça pelo Velho Oeste. Você começa rezando por uma viagem tranquila. Depois, quer chegar logo.” Ferrand nunca perde a paciência e Truffaut julga que tal comportamento é o mais adequado: “Quando estamos à beira das catástrofe, sinto que é preciso tranquilizar as pessoas com quem estamos trabalhando. O diretor deve passar segurança”.

Ao evidenciar os bastidores de um filme, A noite americana adquire um tom documental. A intenção do diretor era que seu longa se parecesse com uma reportagem de TV que acompanha uma de suas gravações. A trama, entretanto, não abandona completamente a ficção. Há vários personagens com dramas interessantes. Um deles é Alphonse (Jean-Pierre Léaud), um ator imaturo que namora a estagiária pouco confiável. Julie Baker (Jacqueline Bisset) é a estrela de A chegada de Pamela. Os produtores desconfiam da instabilidade do comportamento de Julie já que ela já havia sofrido de depressão profunda e abandonado um set. Outra que se destaca é Severine (Valentina Cortese), uma atriz veterana que sofre com a velhice.

Há um elemento que une essa diversidade de personagens – o prazer de fazer cinema. Uma das mais apaixonadas pela atividade é Joelle (Nathalie Baye), a assistente de Ferrand. Ao ver uma colega abandonar o trabalho para fugir com um dublê, Joelle diz que “largaria um cara por um filme, mas nunca largaria um filme por um cara”. É com esse olhar de encanto pelo próprio cotidiano que Truffaut faz de A noite americana uma carta de amor à sétima arte. Quando a gente faz aquilo que gosta, rotina não é necessariamente um tédio. Se você ainda não assistiu ao filme, entre no clima da história com vídeo abaixo que destaca o tema musical composto por Georges Delerue. Até a próxima semana!

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