O diretor Roman Polanski sempre teve um ponto de vista diferenciado sobre a humanidade. E quem pode culpá-lo? Afinal, ele perdeu sua família no Holocausto, passou fome na Polônia do pós-guerra, teve a esposa grávida assassinada por um maníaco e até hoje enfrenta a acusação de estupro de uma menor, além de todo o circo legal e midiático formado em torno desse caso. Então, é até natural que ele veja o ser humano com desconfiança e pessimismo.
Por isso, adaptar para o cinema a peça Carnificina de Yasmina Reza (já montada em vários países, inclusive no Brasil) é para ele uma mão-na-roda. Confinada em um único cenário (como muitos dos seus filmes mais conhecidos), a história fala sobre a insensatez humana que vem à tona quando o verniz da civilização (bem fino, aliás) se rompe. Polanski fez da versão filmada de Deus da Carnificina um trabalho totalmente alinhado com seus temas mais pessoais.
O filme mantém-se fiel às suas origens teatrais. Com exceção das tomadas de abertura e encerramento, toda a trama se passa dentro de um apartamento de luxo em Nova York. Nele, dois casais estão tentando chegar a um acordo sobre o que fazer com seus filhos. O filho dos Cowan agrediu com um galho de árvore o filho dos Longstreet, e em consequência este perdeu alguns dentes e encontra-se momentaneamente desfigurado.
O que começa como uma reunião cordial entre Nancy e Alan Cowan (Kate Winslet e Christoph Waltz) e Penelope e Michael Longstreet (Jodie Foster e John C. Reilly) logo desbanca para a baixaria, escatologia e rancores expostos. Ao longo de poucas horas em uma tarde, as rachaduras em ambos os casamentos serão expostas, os dois homens (meio que) se aliam, as duas mulheres se embebedam e o telefone celular de Alan, que não para de tocar, será alvo da fúria exposta pelos personagens.
Os atores têm performances calculadas e perfeitamente adaptadas à medida que a história progride. Jodie e Kate ficam cada vez mais exageradas (deliciosamente caricatas em alguns momentos), e Reilly é ora simpático, ora destrutivo por baixo da sua fachada de bom sujeito. E Waltz tem a melhor atuação do filme. Com seu jeito mal humorado e cínico, o ator provoca boas risadas no espectador. Ao final, estão todos com os nervos em frangalhos, e o público fica tenso e ri bastante (pelo menos aqueles com uma disposição para o humor negro).
A fotografia do filme acompanha o período de tempo da história – a luz é superexposta no início e vai diminuindo, até chegar à penumbra do fim de tarde. E o trabalho de câmera “enlouquece” junto com os personagens. Os enquadramentos fixos do começo são substituídos pela câmera na mão e movimentos bruscos da parte final. Deus da Carnificina é curto (1h20) e Polanski e Reza (que colaboraram juntos no roteiro) não inventam muito em relação ao material fonte. Ao final, a sensação é de ter visto um teatro filmado, mas de forma muito cinematográfica.
Não precisa muita coisa para fazer alguém enlouquecer e mostrar sua verdadeira essência – essa é a ideia central por trás de muitos filmes de Roman Polanski. Em Deus da Carnificina o diretor expõe isso de maneira clara, direta e econômica. E a conclusão é irônica: os adultos perdem o controle e discutem de forma tola, transformando-se num engraçado espetáculo. As crianças, pelo menos, são mais honestas, batem uma na cara da outra e depois reconhecem a insignificância de seus atos.
Cotação: ★★★ Bom